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domingo, 23 de maio de 2010

Relato de um ex camisa 9

Tenho inúmeros amigos que seguiram a profissão de seus pais. Dentista filho de dentista, veterinário filho de médica com agricultor, técnico em informática filho de Professor Pardal... coisas do tipo. Se bem que tenho um amigo que é modelo fotográfico, filho de um ex-ginete que se juntou com uma dona da cidade. O pai, criado em lombo de aporreado, não aceitou a profissão do filho. O que o garoto fez? Falou para seu pai que faria faculdade de Direito na cidade grande e seguiu fazendo fotos para tudo que é tipo de revista, exceto revistas campeiras. Quando volta pra casa vem falando que fulano ou sicrano deveria processar o vizinho por isso, por aquilo. Assim já está quase na hora da formatura e ele nunca entrou na faculdade. O máximo que faz é procurar na internet alguns artigos de “seus direitos” e contar com a cumplicidade da mãe.

Mas eu até entendo isso. Eu mesmo. Sempre joguei de atacante. Mesmo quando os times estavam inflados de jogadores agudos. Sempre briguei pela camisa 9. Não que eu tenha aptidão física para ser centroavante. Bem pelo contrário. Mas queria ser o homem referência, assim como meu pai sempre foi. Queria ter os troféus de goleador, primeiro gol de cabeça, destaque, revelação... tudo o que eu via na caixinha de medalhas do pai. Queria ser um centroavante como ele. Mas não sabia sequer fazer um pivô. Claro que tinha jogos que fazia meia dúzia de gols. Sempre esperando a bola no segundo pau ou antecipando uma bola atravessada na frente da área por algum zagueiro displicente.

Aos poucos o pessoal pedia para que eu voltasse um pouco mais para marcar. Diziam que até marcava bem, porque não desistia das jogadas, que era só eu pegar o jeito de marcação e não me bocar nos dribles que renderia muito mais ali atrás do que pescando na frente. Aos poucos a turma já pedia que eu iniciasse o jogo na marcação. Os elogios começaram a brotar. Um emaranhado de dúvidas atormentava minha cabeça durante e após os jogos, mas no jogo eu era só dedicação. Não podia comprometer taticamente.

Fui perdendo minha centroavância. Logo agora que estava concluindo um pouco mais forte. Ao aceitar que jogava melhor pela ala ou pela ponta voltando para marcar, mudei também minha personalidade. De centroavante, passei a ser um ponta ciscador não só dos gramados, mas também da vida amorosa. Nas ruas já não andava com a desenvoltura de antes. Lateral tem uma vida sofrida, triste. Não pode andar por aí mostrando os dentes. Às vezes é como a vida de um cachorro preso ao vai-vem. Mas o principal: Lateral qualquer um pode ser, ninguém nasce lateral, assim como um centroavante. Mas agora eu sou um lateral. Um camisa 2 com mais credibilidade e confiança do que quando vestia a 9 ou 18. E outra: eu atribuo essa minha mudança de posição e atitude nos campos da vida ao fato de ter perdido o companheiro de ataque dos velhos tempos do Terror das Menininhas F.C., quando saíamos na noite para honrar e representar o nome do time.

Cumprindo bem a função de ala, sem mais aquela ânsia de colocar as bolas na rede, e sem o ímpeto de atacante feroz, comecei a jogar com a camisa 2. Às vezes na lateral esquerda, outras na direita mesmo. Aquele lateral de algumas arrancadas verticais e algumas ultrapassagens para surpreender o adversário, mas geralmente esperando a reação do adversário para só então agir e não levar o drible. Agora só vou na boa. Só com muita certeza de que a empreitada a frente não vai me fazer levar bola nas costas. Como eu disse lá em cima. Com a obrigação de marcação em detrimento de qualquer ataque, passei a utilizar essa doutrina na minha vida pessoal. Não foi apenas o número às minhas costas que mudou. Essa foi a primeira mudança apenas. Uma mudança de fora para dentro.

Agora o difícil vai ser eu falar para meu pai. Acho que ele não vai entender meus motivos de jogar com a camisa 2. Já sei. Vou fazer como meu amigo modelo fotográfico fez: apareço na casa dele com a camisa 7. Chego dos jogos e comento algumas jogadas agudas e tudo resolvido, ele vai pensar que sou um ponta das antigas, daqueles dribladores. Aquele meu amigo está há três anos dizendo que faz Direito. Quando eu tiver consolidado na posição conto para ele. Ele vai entender. Mas não quero nem ver a reação dele quando eu for cobrar um arremesso lateral. Isso sim vou esconder. É muita judiação pra um pai camisa 9.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Meu amor dos oito anos

Quando a vi no caixa do supermercado tive a certeza que era ela. Era meu primeiro amor. Eu tinha oito anos. Talvez me digam que aquilo não era amor, que eu nem sabia o que era amar. Mas aquele era o mais sincero e fiel amor que já vivi. Um amor sem limites, sem fronteiras, sem poses, sem maiores ambições, sem toque, sem beijo... sem fim.

Reparei no que comprava. Biscoito, iogurte, cerais e uma caixa de bis branco. Nesse instante de análise conseguia sentir o cheiro da flor de jasmim que tinha ao lado do balanço que brincávamos na praça. Só podia ser a Kelly ( para não compromete-la, o nome é fictício, mas quem conhece a história vai saber de quem se trata). O tamanho da certeza de que era a Kelly era o mesmo do medo que tinha de chegar até ela e falar: Lembra do Juninho? Sou eu.

Mas se ela nem quisesse saber de mim. Ou pior, se não lembrasse de nada. Afinal nunca mais tínhamos nos visto. Se tivesse namorado, ou mesmo casada. Mas se me reconhecesse e também nutria esse sentimento de infância mesclado com o medo de gente grande? Também tinha a chance de não ser ela, mas uma sósia.

Eu tinha que descobrir.

E agora? Estou me sentindo como um batedor de falta no final de jogo. Um filme passa pela minha cabeça, mas a barreira está adiantada e tudo depende desse chute. No próximo capítulo. Acompanhe.