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quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Medo de Sonho, Vida e Morte

“O medo não é como a coragem”, já se gabava meu avô, sentado sobre o pelego fechando um desfiado e contando seus causos.De como matou cachorros e caçou capinchos e pescou cada peixe maior que outro, contou umas duzentas histórias. Mas foi da vez do sorro que ele se arrepiou contando:“_Tava curando uma ovelha e não vi o tempo passar, quando me dei conta estava anoitecendo e a cura estava pela metade. Como não podia sair sem terminar, continuei.Quando estava voltando, uns cem metros do rebanho, ouvi um barulho nos arbustos. Era um sorro que vinha em minha direção farejando o sangue. Muito ligeiro que sou quando a cousa aperta, atinei num repente. Enrolei o pala no braço e deixei que mordesse. Ele mordeu com raiva. Com a mesma gana saquei a peixeira e lhe sangrei o pescoço.Pena foi meu pala. Não prestou mais.”Outra de coragem que me contava foi da vez em que ficou de caseiro:“Eu sozinho naquele fim de mundo, onde se ouve o crescer dos pêlos do mouro no galpão e se sente o cheiro e gosto de saudade em cada mate na manhã. Sem nada para fazer além de cuidar o resto de móveis que ficaram na casa da estância vazia. Foi no terceiro dia da casereada que se deu o rebuliço:_Estou troteando no meu mouro pelo corredor da Morte (diz a lenda, que o corredor já sumiu com mais de mil cabeças de gado e dezenas de peões e tropeiros. As terras dos arredores, não por acaso, são desvalorizadas, apesar de tudo o que se planta cresce e todo gado engorda fácil. Relatos dão conta que se trata de espírito, centauro ou capeta que volta e meia assombra aquelas bandas) quando vi de longe um cara vestido de panos e chapéu pretos vindo a galope num picasso de estrela na testa.Mandei uma bala na estrela do cavalo e outra no peito do cavaleiro, quando nele surgiu uma espada de fogo.Te juro que acertei, que na época eu era bom nisso,mas o galope continuava em minha direção.”De repente eu era meu avô. E o que eu queria era morrer; não seguir naquela cena.Como se adivinhasse, quem apeou foi a Morte, do picasso em pêlo. Eu tremia por dentro, mas era impassível por fora.
_Vim te levar comigo, mas tua valentia me assustou e me mataria se fosse viva. Por isso te levo e se quiseres podes voltar – disse a morte com sua voz surpreendentemente serena e macia.Perplexo com tanto horror, não conseguia me mover.Vi quando minh’alma (um apóstrofo. Fazia tempos que não usava um. Até vou repetir).Vi quando minh’alma saiu do meu corpo e foi na carona, pela poeira. Fui reaparecer num lugar onde parecia uma cabine de vigilância do mundo.Eu, que sempre tive medo da morte, que vivia no meu mundinho de campos, cavalos e aventuras curadas a jujos de chimarrão, alienado entre tanto verde, percebi que o mundo, a vida era pior que a morte.Vi rios poluídos com peixes mortos boiando, florestas sendo queimadas e até desmatadas em prol do capitalismo, ciclones destruindo cidades, a impunidade, tal qual a injustiça, correndo solta. Vi os efeitos do aquecimento global, as diferenças sociais e todas as doenças.Antes de responder à Morte, acordei da sesta, lagarteando com a cuia na mão. Naquele momento percebi que meu medo de morrer era tolo. Passei meus anos todos com medo de morrer. Medo de ir para o inferno. Porém não havia percebido que o inferno é o mundo em que vivemos. Que as profecias se realizaram e continuam se realizando ao passar dos séculos.Lamentei não voltar no sonho para dizer à Morte que não queria mais a Terra. Porque eu tenho mais medo da vida na terra do que da morte no inferno.
Elder Nunes Junior